Uma análise comparativa entre o Poder Cibernético e o Nuclear
Um jogo de soma zero


A Guerra Fria, período iniciado ao término da Segunda Guerra Mundial e finalizado com a degradação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), 1947-1991, foi marcado pela disputa entre duas potências que promoveram a bipolarização global entre o capitalismo e socialismo.
O Poder Nacional foi balanceado pela expressão militar, fundamentada no desenvolvimento e capacidade de emprego de armas nucleares.
A disputa entre os Estados Unidos, liderando o bloco capitalista ocidental, impondo sua visão global por meio do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a URSS, por meio do Pacto de Varsóvia, liderando o bloco comunista, teve no poder nuclear o fiel da balança de equilíbrio que permitiu ao mundo sobreviver a esse nebuloso momento de sua história.
A criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 24 de outubro de 1945, na cidade de São Francisco, EUA, como resultado das conferências de paz realizadas no final da Segunda Guerra Mundial materializa, por meio do seu principal órgão, o Conselho de Segurança, a relevância, em contexto global, dos Estados detentores de armamentos nucleares.
O risco da destruição em massa provocada pelo emprego desses artefatos fomentou efetivos debates sobre a sua regulamentação que culminaram na elaboração do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), voltado a evitar e restringir o desenvolvimento e utilização de armas e tecnologias nucleares.
A sensação de destruição global e eliminação da humanidade foram essenciais para a formulação de uma governança sobre a questão nuclear.
Segundo Eric Schmidt, 2023: “A humanidade evitou o paradoxo nuclear ao fazer a nítida distinção entre forças convencionais, consideradas conciliáveis, com a estratégia tradicional e armas nucleares, consideradas excepcionais”.
Após anos de relativo equilíbrio internacional, o mundo encontra-se, novamente, no dilema do emprego de armas de destruição em massa, agora com caraterísticas específicas que impedem a disseminação da sensação de medo no seio da comunidade internacional.
Segundo a Organização das Nações Unidas (1948), as armas de destruição em massa podem ser entendidas como:
Armas explosivas atômicas; armas com materiais radioativos; certas armas químicas e biológicas letais; quaisquer armas desenvolvidas no futuro com efeitos destrutivos similares; quaisquer armas desenvolvidas, no futuro, com efeito destrutivo comparável àquele da bomba atômica ou de outras armas mencionadas.
Diferentemente das armas nucleares, as que constituem o Poder Cibernético atuam de maneira imperceptível ao senso comum. Contudo, elas possuem um potencial de destruição imaginável.
Nas palavras de Daniel Huttenlocher, 2023:
Na medida que o Poder Cibernético é delineado para as armas, elas se tornam mais imprevisíveis e potencialmente mais destrutivas; simultaneamente, à medida que se movem pelas redes, elas desafiam a atribuição. Elas também desafiam a detecção, ao contrário das armas nucleares, podem ser carregadas em pen drives e são de fácil difusão.
Na atualidade, infere-se que o mundo passa pela denominada Guerra Morna, sendo travada no ciberespaço entre dois blocos antagônicos.
Essa nova realidade possui similar capacidade de destruição global do período da Guerra Fria sendo diferenciada, desta última, pela anonimização implícita nas armas cibernéticas.
Segundo Henry A. Kissinger, 2023:
As armas nucleares estão situadas em uma estrutura internacional de conceitos sobre segurança e controle de armas desenvolvidos ao longo de décadas por governos, cientistas, estrategistas e especialistas em ética, sujeitos a refinamento, a debate e à negociação. As armas cibernéticas não têm uma estrutura comparável. De fato, os governos podem estar relutantes em reconhecer sua existência. As nações, e provavelmente as empresas de tecnologia, precisam concordar quanto ao modo como coexistirão com as armas cibernéticas. A difusão do Poder Cibernético por meio das funções de defesa dos governos alterará o equilíbrio entre governos internacionais e os cálculos que sustentaram esse equilíbrio em grande parte de nossa era. As armas nucleares são caras e, por causa de seu tamanho e sua estrutura, são difíceis de esconder. As cibernéticas, por outro lado, são executadas em computadores amplamente disponíveis, sendo disponibilizadas para qualquer pessoa com um notebook, uma conexão com a Internet e capacidade de navegar pelos elementos obscuros que ela abriga.
Outro aspecto fundamental, na análise entre a Guerra Fria e a Morna, reside nas três qualidades, tradicionalmente empregadas para separar uma tecnologia militar da civil.
Normalmente, a distinção entre o conhecimento militar e o civil é compilada em: diferenciação tecnológica, controle concentrado e magnitude dos efeitos. Até o momento, nenhuma tecnologia que possua as características citadas conseguiu ser, ao mesmo tempo, de emprego dual, de fácil disseminação e potencial e consideravelmente destrutiva. Contudo, as armas cibernéticas possuem a capacidade de quebrar esse paradigma.
A tecnologia cibernética é de emprego dual, podendo ser executada em qualquer computador, não sendo necessárias grandes infraestruturas para seu uso. Tal situação reduz a capacidade de controle dos Estados sobre a existência e utilização dessas armas, que possuem elevada capacidade de destruição.
A disseminação dos códigos é facilitada pelas características do Espaço Cibernético, permitindo a rápida difusão das linhas de comando e seus efeitos destrutivos, como verificados em ataques realizados pela Rússia contra a Estônia.
Assim, expõe-se o elevado grau de complexidade da Guerra Morna em relação à Guerra Fria e a dificuldade que os Estados enfrentam em regulamentar ou promover uma governança global que permita manter um equilíbrio pacífico na sombra das ameaças cibernéticas.
Essa conjuntura fica mais complexa na medida em que a Guerra Morna não exclui a existência da Guerra Convencional ou da Guerra Nuclear.
Na verdade, o Poder Cibernético complementa as capacidades empregadas em conflitos convencionais e pode promover a escalada da crise para um potencial emprego de artefatos nucleares como última ratio regis.
Nas palavras de José Eduardo Malta de Sá Brandão e Eduardo Arthur Iztcki:
As consequências de uma “corrida de armas cibernéticas” não podem ser comparadas a uma corrida armamentista nuclear. Porém, a proliferação de dispositivos conectados e as tendências de uso governamental de ferramentas ofensivas podem, em breve, tornar essa comparação preocupantemente válida.
Fonte: Livro " O jogo do Poder no Espaço Cibernético".